1.
Uma mãe numa manhã mal disposta, um lanche e um beijo ambos apressados, para a cria mais pequena, antes de viajar pela estrada da esperança numa experiência de aprendizagem mais moderna, capacitadora e feliz para o mais velho. A maresia e a humidade deste nosso norte difícil de amar a entranhar-se na pele, junto com a fé numa escola com um pé no futuro.
Uma clarinha em Fão, a lembrar a doçura da vida no começo,envolvida pelas amargas viagens Viana-Porto de duas horas ou, por vezes, mais. A vida era mais devagar.
Mas os reencontros bons com o passado, servem só para nos lembrar que apenas temos o presente. Feito também das memórias e das marcas na pele de quem fomos, de quem se gravou em nós enquanto crescíamos, com doçura e amargura em doses quase iguais, próprio da vida no começo. Temos tanta tendência para re-inventar o passado como para imaginar o futuro. Nenhuma memória é totalmente verdade - a não ser a da pele.
2.
De volta, encontrar a realidade da escola pública,essa ainda um pé no passado, para assistir à audição de final de ano: sem peneiras, sem grandes recursos, mas com dedicação, nota-se na professora de música o amor ao que faz. quarenta minutos na semana, que a arte ainda não compete com as contas mas com direito a coro afinadinho e alegre, cinco canções com coreografia bem disposta e um teatro com direito a mensagem politicamente correta: alimentos processados a mais na lancheira fazem mal e não há lobos maus são todos bons, nesta infância carregada de açúcar e segurança. Mas há maldades disfarçadas de doçura e desafios que são nossos amigos, não se deixem enganar - nem pela sacarina nem pela psicologia positiva da moda.
Mãe cansada, mãe taxista, mãe coach, mae agenda , sete anos pouco emancipados, em casa, em dez minutos a montar, altivos e cheios de confiança, um garrano duas vezes o seu tamanho. Somos contraditórios e complicados, mesmo aos sete.
Sento-me ao lado do avô da Matilde no banquinho destinado aos familiares-audiência das [poucas] proezas dos aprendizes. Partilhamos coisas triviais sobre a infância e ele reconta-me a dor da perda do Amor da sua vida, nem há um ano.
Conta mais coisas hoje, as lágrimas nos seus olhos claros e pequenos, as saudades. O João com um hemisfério a ouvir-nos e o outro em risinhos parvos com amigas e amigos que encontrou no picadeiro. Namoricos e primeiras paixões aos 13. Tudo certo.
43 anos juntos, sabe? Vou tentando manter-me. nado e caminho todos os dias nunca fui de ficar parado. O corpo a mexer para pôr a cabeça no sítio e a solidão bem longe. Desde os 14 que estávamos juntos. Uma história de amor - a memória certa da pele.
Os “potros” em risinhos parvos ao nosso lado. agora são mais imaturos diz o avô. Anui. Mas não sei se concordo mesmo. Sabem muito mais, mais mundo, mais dialéctica e estímulos. Mas emocionalmente mais básicos, talvez.
A Helena teve um cavalo diferente porque a égua do costume está prenha. A D.Fátima vaticina que se pode esperar o pior, porque o pai é um cavalo grande e ela é pequenina. Não sei se vai aguentar, caso o potro seja muito grande. Onze ou doze meses de gravidez , depois logo se vê. Pode não se aguentar.
Sim, às vezes é demasiado, para nós mães humanas também. Não o parto, graças a um sns eficaz, mas tudo o resto, para aquilo que não temos ajuda de sistema nacional nenhum.
Criar um filho tornou-se tarefa invisível, fora do radar das coisas importantes ou essenciais para a humanidade. É algo que de preferência acontece à margem do que somos, fazemos, temos, aos olhos da sociedade. Deve ser feito de forma que atrapalhe pouco: a nossa beleza, forma do corpo, hábitos, trabalho, diversão e prazer. Mas a memória da pele sabe, sabe de toda a entrega, dedicação e limites rasgados.
3.
No limite, tantas vezes tantas mães. Eu, hoje. Cachorros para jantar para me vingar do dia-cão. Último sprint da tarde na ida ao pingo doce mais perto. A caminhada possível para o visto diário na atividade física que nos mantém as hormonas mais ou menos no sítio, aos 45.
[Imitação de] pão para hotdog ensacado em plástico e salsichas do frasco. Nem sequer de tofu a aliviar alguma parte da consciência. A professora de música que não me ouça nesta partilha sincera.
Junto as batatas fritas para o perdido por cem perdido por mil. a meu favor: também junto mirtilos e paraguaios. Lá na ponta da fila para pagar, umas meninas africanas deixam algumas coisas na caixa porque só têm quarenta euros para gastar. Não fui capaz de me desfazer da cobardia de não fazer nada. Assistir calada e sentir pena do mundo. Partilhas emocionadas no Facebook são mais fáceis do que partilhar meia dúzia de euros em carne e osso.
A senhora do pingo doce ainda vê se lhes aproveita um talão de desconto válido enquanto entabula conversa com o senhor que se segue, cliente habitual. Dá para ver pelo cabaz que é só ele e o gato. Se hoje foi à praia, quer saber, é que sexta é que vai estar bom mais de trinta graus a mim é que ninguém me apanha assim a esturricar ao sol.
[Esturrico aqui nesta cadeira enfadonha, com horários de sol a sol, branquinha e mal paga, parecia mesmo que ia acrescentar mas foi só a minha imaginação a galopar.]
Ele contrapõe que fez caminhada junto ao mar. Doze quilómetros a enganar os sessenta e cinco. O corpo a mexer para pôr a andar a solidão. A meio tive de parar,pela areia custa muito mais.
Sim, parar para recuperar. Aliviar a culpa e o peso. Tanto disto que devíamos saber fazer, nós mães, a meio das nossas ultra-maratonas quase diárias. Sorriu-me de volta.
4.
A senhora branquinha da caixa descobriu que eu ia fazer um bolo em breve porque também levei açúcar e pepitas de chocolate. Não tenho de verificar se preciso de deixar ficar nada para trás, nem o supérfluo. A hipocrita da gratidão a fazer caminho através da pouca sorte dos outros. Somos tão contraditórios, cheios de paradoxos e sentimentos opostos. Cheios de tudo ou nada e tantas vezes apanhados num redemoinho confuso de crenças e emoções.
Carreguei as minhas compras, sacudindo os mil pensamentos que tinham vindo nos sacos também. um pé em frente do outro no caminho certo até às crias. O que eu dava por um copo de vinho, o jazz na coluna e a casa só para mim. Na passadeira uma mulher, talvez da minha idade ou mais nova um pouco, atravessou com uma cadelinha de pelo enrolado. Vinham do jogging. Tinham bom ar. A mulher que podia ser eu falava com a cadelinha como se fosse um bebé: vamos, degrau a degrau, muito bem fofinha, por aqui, estás cansadinha, já está quase.
Era amoroso e um pouco louco. Igualzinha a mim em muitos dias, com os meus filhos. O cansaço. A solidão. O que temos que nos sufoca e o que não temos que nos faz tanta falta. A culpa, o cansaço, a carência a solidão.
Saboreamos o pseudo-jantar juntos. Abri a minha garrafa de tinto. Não houve jazz mas sim uma série americana com público ao vivo na Netflix.
O pai chegou, eram quase dez, as horas de sono já a descompensar na pequenina mas um beijo e um sorriso cansados e felizes, de estar tudo melhor agora. De estar tudo certo no meio do caos. Podermos partilhar o peso, aliviar o peso, sabermo-nos amparados, também é uma definição de amor. Eu pude fazer uma pausa de mãe e nesta crônica descrente dos dias, para ir levar o lixo.
a noite maravilhosa num misto de ar quente e brisa fria arrepiou-me a pele. O verão a nascer no hemisfério norte, lembrei-me, era hoje. A lua mutável, fina a prometer o futuro , fixa no horizonte, numa beleza só, enquandrada pelo monte lá ao fundo. Tão antiga e cheia de luz, pensei. tantos rostos e histórias e memórias e planos, a cintilar no meu coração. Um dia só, a vida inteira.
Revejo agora este texto e noto que se calhar faltou falar da esperança, da magia, da alegria e do amor - acho que é assim mesmo, tão humano: olhamos para trás e achamos sempre que podíamos ter feito melhor, diferente. As memórias do passado não são certas, mas a pele sabe, no fim do dia, do que, na verdade, os nossos dias são feitos. ♡☽