Num fim de dia, nestas férias, ainda antes de entrar para a primeira classe, a Helena - seis anos bem feitos de muito colo e muito brincar, ainda assim , já iniciada ( não por mim, que sei bem que faz mais dano cedo demais do que tardiamente!) nas letras e na escrita - rabiscava algo nas folhas brancas destinadas à impressora. eu ia e vinha, nos afazeres normais do final do dia, roupas para arrumar, jantar para desembrulhar, quando me apercebi de um arrufo qualquer entre ela e o pai. a voz grave de um a dizer que assim não, que não podia ser, tanto papel a ser desperdiçado, o choro miudinho dela a irromper, agudo.
acudi: o que era, o que se passava, que não entrasse, disse ela. estava a fazer-me uma surpresa. respeitei e iniciei a conversa com ela da porta da salinha. se podia saber o que era ou pela menos ajudar no que se estava a passar. estava a sair tudo mal. e o pai ralhou por causa do papel gasto.
um minuto, duas respirações, um compasso de silêncio (meu) e que sim, que podia entrar.
a frustração era evidente nela. e perguntei, então, se podia ver o que estava a fazer. abriu a passagem para a secretária e para o seu coração.
vês , está tudo mal. queria escrever-te uma coisa. não saiu bem e tentei outra vez. e também não saiu bem e fiz outra, do começo… e outra, e outra. e tudo a sair cada vez pior.
eram muitas folhas. algumas com duas linhas desenhadas e o inicio de uma frase: “de helena, para mar”. Noutras, as letras terminavam mais cedo, outra nem a segunda linha estava terminada. outras rabiscadas e abandonadas depois. outra tinha o início de um desenho depois das linhas que não chegou onde ela queria. falhava-lhe a mão, falhava-lhe a concentração, a paciência. falhava-lhe a calma. mas a última a falhar foi a persistência. eram mais de vinte tentativas.
emocionei-me e antes de qualquer “lição” sobre ecologia, resiliência ou auto-estima disse-lhe o que me assolou o coração:
que nunca ninguém tinha feito vinte tentativas por mim. vinte e três para ser precisa. que amava cada uma delas e que , se ela permitisse, queria guardar todas, juntas, num lugar onde as pudesse abraçar todos os dias; que para mim tinham muito valor.
que mostravam a sua dedicação e empenho e o seu Amor e isso, para mim, era o presente mais bonito que me podia ter dado.
não disse que estava bem, que estavam bonitos, que não era preciso aquele chinfrim por uma letrinha sair da linha. também não disse que estavam mal ou incitei para que continuasse a tentar até atingir um que estivesse bom.
disse-lhe que era normal estarmos mais cansados no final do dia. que era normal haver dias em que nada saía como nós queríamos.
que, por vezes, não está exatamente como queremos mas é possível dar um jeito e até chegar a outra coisa que nem tínhamos imaginado.
que percebia a irritação dela e que aceitava que para ela não estivesse bem.
no fim do jantar, talvez quisesse terminar aquele que tinha em mãos, eu podia ajudar, com a escolha das cores e assim, se quisesse.
anuiu. fiz um montinho bem alinhado com as folhas descartadas, disse-lhe que ia arranjar uma fita bonita e um dossier para depois as guardar na mesinha de cabeceira, para as ter perto de mim.
as rotinas continuaram. jantamos e vimos tv. quando, mais tarde, nos fomos deitar, nas deslocações entre o quarto de banho e o seu quarto, deitou o olho à salinha e vendo no mesmo sítio , talvez abandonado, o montinho de folhas, virou-se para mim:
- Tu disseste que ias abraçar os meus ERROS…
eu juro que não usei essa palavra nenhuma vez. e acho que ela, durante a nossa conversa, também não. mas era esse o significado que estava dentro dela.
não lhe falhei, pelo menos desta vez. e espero não lhe falhar nunca, nessa tarefa tão esquecida nos dias que correm e tão importante no nosso papel de pais: abraçar os seus “erros”; cuidar mais dos baixos do que glorificar os altos. ter conversas honestas e não querer anular emoções. no fundo, a não querer dar lições de moral aos nossos filhos, antes a ligarmo-nos a eles, no momento em que estão, a quem são, a não fazer nossas as suas dores, mas a ampara-las, estado lá, não fazendo de conta que não foi nada e partilhando quem somos também.
bom, podem argumentar: sim, mas e a Ecologia?
Essa sensibilidade ela só pode aprende-la todos os dias com o que vê à volta dela acontecer, com os hábitos de todos os adultos com quem convive, com o estilo de vida que lhe é dado a experimentar. e não há respeito pelo planeta , pela Natureza ou pelos outros que não comece com nos sentirmos respeitados, nós.uma espécie de ecologia… emocional.
Tal e qual! Como diria o meu querido filósofo Clóvis de Barros Filho: "A ecologia que se f***" 😀 (no bom sentido, claro - ainda que ele se referisse à pedagogia, num vídeo sobre brio)
Linda história Mariana! Promessa de leitura e feedback de vários outros artigos que acabo de salvar (para breve). Obrigado 😊